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O olhar falha | Odete (Português)

11th June 2025

Texto escrito por Odete para o projeto Live Art Writers Network durante o Festival Dias da Dança, Abril-Maio 2025. Outras comissões criadas e publicadas em resposta ao festival e suas performances integrantes, e a mais informação sobre o projeto, podem ser encontradas aqui. Todas as Comissões são publicadas em Português e Inglês.


Ouve a versão áudio deste texto, lida por Odete, aqui:


I.

A fantasia do contexto

Ou

O contexto enquanto ficção;

Sob um sol de chumbo, cruel e vertical, que fazia estremecer o casario e as almas, reuniam-se os pássaros nos telhados como velhos conselheiros de um reino em ruínas. Gorjeavam entre si não canções, mas murmúrios solenes, parecendo discutir destinos e segredos antigos. Eis senão quando, de entre eles, um corvo — como um pensamento sombrio — desprendeu-se e, com o ar cerimonioso de quem traz decreto régio, poisou diante de mim. Olhou-me com olhos sábios e disse-me: “Tu, sim, tu que desvias o olhar — serás guardadora.”

Guardadora! Palavra estranha, gravada na minha carne como se fosse uma epígrafe de pedra. E não se trata, veja-se bem, de um ofício comum, como os que se aprendem com o tio notário ou o padrinho conselheiro. Não. Ser guardadora é destino, é carga espiritual, é – atrevo-me a dizer – missão quase sacerdotal. Cabe-me o dever grave de recolher e preservar os suspiros do efémero: a dança, o teatro, a música — essas artes tão belas quanto fugidias, que nascem para morrer no instante seguinte.

Quais flores!

 Such pansy art forms!

Pansy as in, a little faggot-y

De pulso quebrado, olha para elas ,

Deste dia em diante — o dia do corvo e do sol implacável — passei a habitar os bastidores da memória. Percorro salas escuras, onde os corpos dançam como sombras animadas por um fôlego divino, onde palavras se transfiguram em gestos, e o som vibra como carne sensível. Tento, com a humildade de um escriba antigo, fixar o que naturalmente se desfaz: o instante.

Porque é isto o que se me impõe: viver entre dois tempos — o do acontecimento e o do arquivo. 

e do homem e da mulher

Do gay e do hetero

É tarefa ingrata, quase paradoxal: arquivar o que não deseja ser fixado, reter o vento na palma da mão. E, no entanto, insisto. Lanço pontes, frágeis mas sinceras, entre a efemeridade e a eternidade.

Às vezes, quando a noite se adensa como um véu espesso 

Ou uma ejaculação derramada

sobre os arquivos, voltam os pássaros. Pousam nas janelas com o silêncio grave dos que sabem demais. Murmuram nomes que o mundo esqueceu, melodias que jamais se gravaram, danças que se extinguiram entre guerras e cismas. E eu escuto. E eu escrevo — com o zelo de quem cuida de uma relíquia, com a ternura de quem segura uma ave ferida.

Sou guardadora, agora. E nesta função há uma beleza austera, uma nobreza melancólica. Há dor, sim — porque recordar é, por vezes, ferir-se de novo. Mas há também uma imensa responsabilidade. Porque aquilo que se guarda, guarda-se para os outros: para os que virão, e para os que já passaram. Para que nunca se perca, entre as brumas do tempo, o rasto breve daquilo que um dia nos fez humanos.

como tu, meu amor

II.

A realidade da obra

Ou

O espetáculo da realidade;

Escuridão. A pele respira melhor quando não precisa mostrar nada. No escuro sinto-me menos observada, e isso tem qualquer coisa de libertador. No escuro não preciso corresponder a nenhuma ideia de mulher, nem sequer à minha. Fala-se do passado; de um Brasil que talvez não exista mais, ou que nunca tenha existido mesmo. E eu penso no que também nunca existiu, ou que me esforço todos os dias para fazer existir: o corpo que fui forjando com tempo, hormonas, olhares e espelhos. Fala-se sobre cantar na miséria. Não ter pão para comer mas ter voz para cantar. E cantar, às vezes, é isso: uma estratégia de sobrevivência. Um fio de som onde me agarro quando não há nada a dizer que não doa, ou que não envelheça. Já fui essa mulher que canta porque não pode fazer mais nada. Ainda sou.

Há um fundo de metal, que brilha, que industrializa e ao mesmo tempo espectaculariza o palco: uma afirmação de que isto não pode ser outra coisa que/se não? um espetáculo. E é isso que me prende: a honestidade da mentira. A beleza do artifício. O palco que admite que tudo aqui é construção, inclusive eu, inclusive esta escrita. Há corpos que são lidos como femininos, pelo menos por mim, que dançam, que rodopiam e caem. Caem uma. Caem duas. Caem três vezes. E há qualquer coisa de tranquilizador em ver que se pode cair assim, sem vergonha, com precisão. Há uma mulher que cai. E depois outra. E depois uma outra. Uma sequência que se instala no meu peito com um eco estranho — como se cada corpo que desaba me lembrasse de todas as vezes em que eu também deixei de me aguentar. Não por fraqueza. Por excesso. Por saturação.

A última cai num jogo com uma cadeira, que parece flertar com a miséria dessa mulher. Ela diz “não te deixo sentar, ou se calhar deixo, ora aproxima-te, experimenta”. E eu conheço esse jogo. Sentar-se é expor-se. Sentar-se é aceitar um lugar — e às vezes não há lugar que baste. Há uma banda, de homens? Eu pelo menos leio como homens. As mulheres dançam. Os homens fazem música. É dividido assim… parece-me estranho, mas a gente continua. Continuamos porque estamos habituadas. Porque mesmo quando não queremos, lemos a divisão e já sabemos onde estamos colocadas. Os homens (,) eles entregam tudo nas batidas, que rasgam o espaço do espetáculo. Elas são os gritos que ninguém dá. Porque isto é um espetáculo e cada queda é uma queda desenhada. E se a queda é desenhada, talvez o envelhecimento também possa ser. Talvez haja beleza nisso — linhas coreografadas no tempo, dobras, sulcos, pequenas rugas que também dançam.

Hoje ninguém sangra aqui. Não há joelho esfolado que se veja – esfolada talvez fique a alma mas com essa não lida o espectador. Pelo menos não para já. E a alma… a alma não interessa tanto assim. Não vende, não se representa. A alma é para ser sentida sozinha, no escuro, depois do aplauso. Volta a escuridão. E nela nasce uma luz, que percebo ser um projeto de vídeo. Ele atravessa o palco, e depois escorrega para a plateia. A imagem segura-se a todas as paredes. E a luz torna-se pele. Uma pele alheia que ilumina a minha. Quando a luz agarra algo mais sólido ela mostra-nos um vídeo: é Jó Bernardo. Eu sei disso porque a conheço, mas para quem não conhece a imagem mostra uma mulher mais velha. E há algo na velhice que me comove profundamente — talvez porque é a promessa de que, sim, vamos continuar. Que há futuro, mesmo para nós. É um vídeo de ela com a Gaya nos braços, em relação com o corpo dela como se num ensaio prévio. E essa ternura entre corpos femininos é tão rara, tão urgente. A imagem escorrega novamente pelo espaço e desaparece. Voltamos à luz de palco.

Há uma boneca que aparece. Boneca ou bunekah? Boneca mesmo, ela é feita por uma das mulheres anteriores, eu tenho a certeza. Ela tem um blazer e uma esfregona que lhe faz de cabelo – e ela dança, e o público sorri. E eu sorrio também, porque conheço esse sorriso do público. É o sorriso de quem se diverte com a diferença desde que ela não se aproxime demais. Porque a boneca, ela relaciona-se com os humanos no palco revelando a sua diferença em cada movimento: a ilusão mantém-se porque ela está sempre de costas para nós. Sempre de costas, como quem foge de ser lida por inteiro. Imagino que seja assim para não vermos a bailarina a segurar o pau da esfregona, para não denunciar que a boneca não tem vida e que é só um fantoche, uma construção visual. Mas qual de nós não é? Eu também aprendi a esconder os mecanismos. A segurar tudo com uma elegância discreta. Ela quer ser passível enquanto humana? Pergunto-me se esta boneca é a Gaya, mais Gaya do que a própria Gaya em palco. Ou talvez ela seja todas nós, quando fingimos que não estamos a fingir. A boneca esconde do público o seu esqueleto, aquilo que lhe permite ser como é – ela dança e o público sorri. Ela dança e o público sorri. Ela dança e o público sorri. O público sorri porque não vê o osso. Porque não quer ver. Eu sorrio porque me revejo e sinto “pobre boneca sozinha” e a minha alma percebe porque a minha alma está calejada também de tanto cair. Mas não uso a palavra dor. Não preciso. O tempo fala por mim.

Eu já caí como as mulheres do início, já caí várias vezes. E também já inventei um lugar do meu passado para sustentar levantar-me depois da queda. Esse lugar onde eu era menina mesmo quando ninguém me deixava ser. A música fica mais intensa. O mundo do espetáculo treme. O metal da cenografia treme treme treme, até que sobe e desaparece e tudo é luz. Às vezes penso se o meu corpo também treme assim por dentro antes de se render à claridade. A banda dos homens desfaz-se quando as mulheres também se juntam. Juntam-se no palco e lembro-me do início, em que se contava que as pessoas podem estar mal mas ao menos cantam. Então cantam, e cantam, e cantam e vão desaparecendo. E há nisso um consolo estranho: desaparecer cantando é melhor do que calar-se inteira. A música continua a ser ouvida, ainda que não vejamos ninguém. Sentimos que eles foram embora, e que foram cantando. E eu fico. No escuro outra vez. A pensar que talvez o silêncio seja o que vem depois da canção. E que, mesmo assim, o corpo ainda canta.

III.

A falha do corpo que escreve

Ou

A tecelagem do limite

Eu guardo. Guardo e esqueço. Porque também de esquecimento se faz o arquivo. E se faz a crítica. O crítico. E se eu me esqueço, que direi eu aos pássaros que esperam pelas sementes das minhas palavras – sementes essas que são levadas nos seus bicos sabe-se lá para onde. Eu dou-lhe e elas deixam de ser minhas. Esqueci uma das peças. Culpa. Pânico. Ou melhor, eu sei que não a esqueci mas eu não sei como a falar. Olha, é assim.

Às vezes o corpo recusa. Como um bicho encostado à parede. O corpo diz: “não quero lembrar, não posso lembrar, não vou guardar mais nada para ti.” E tu tentas convencê-lo com promessas de beleza, de linguagem, de futuro — mas ele mija na tua memória e vai deitar-se, exausto. Então ficas com essa falha quente entre as pernas, entre os olhos, entre os dedos. Uma falha que ninguém vê, mas que berra.

Querido corvo,


Arruina-se-me o olho ao detonar a atenção sob a luz que estremece, fade in fade out de um foco que já envelhece por segundo. A dor crónica do meu olhar (que é real, atenção, que eu não minto) diz-me que grita mais o corpo do que a arte. Já notaram os outros humanos que os meus olhos se mancham de vermelho todos os dias, e isso só revela que eu me esqueço. Esqueço porque o olhar dói e eu me apago, cada palavra uma fuga para dentro e para o pânico que se instala.

E o mundo segue, claro. As pessoas fazem stories. Publicam críticas. Conversam sobre a peça com uma clareza que me envergonha. Eu sorrio, finjo que entendo, mas por dentro há um nó de luz pulsante e falha — o olho é a primeira coisa a trair-me.

Sei que há uma presença laminar no espetáculo “violetas” da Doutel Vaz… mas como te mostrar? Olha, dizer-te que o meu olhar rasga como rasga o papel que elas colocaram no chão. Elas dançam por cima dele e a cada passo incisivo ZÁS um rasgão, que a Vânia vem colar com ternura. Que me corrijam os olhos também, esses que tanto me falham.

Querido corvo, é mesmo sobre isso às vezes a arte. Sobre o que não conseguimos. Sobre a minha falha enquanto espectadora e PIOR enquanto guardadora. Sucumbi ao meu corpo no momento de guardar e acabei por … acabei por…

IV.

…acabei por conhecê-la, enfim, a essa dor ocular, senhora de olhos aguados e caprichos inflamáveis, que se instalou nos meus globos como uma marquesa triste em visita prolongada. Acorda cedo, esse olharejo, e exige toalhas mornas, gotas geladas, silêncio absoluto. É uma criatura sensível à luz — como convém a uma dama educada nas estâncias delicadas da inflamação crónica. Tem as veias como linho tingido, e cora-se toda com a fúria dos que sofrem em silêncio e ainda assim esperam ser lidos como poesia.

Convive com intelectuais — olhos que já devoraram Barthes, Artaud, e agora não suportam a claridade de um palco. Desdenha da televisão LED, detesta neons. Se lhe falam em pó, chora. Se lhe apontam um refletor, inflama. Mas não se vai embora. Fica. Instala-se como quem herda. Toma-me como página e escreve sobre mim o seu rubor medieval, o seu eczema de luxo. É bela, e por isso trágica. Médicos observam-na com lupas e termos técnicos, mas ela espreguiça-se com languidez e não responde.

E eu, humilde espectadora, escrevo este relato com os olhos em brasa e o coração coberto de compressas — não por amor à arte, mas por ter sido dominada por uma senhora que ninguém vê e que responde pelo nome de falha e me diz o quanto não poderei mais ser

“Tu, sim, tu que desvias o olhar —”
guardadora.

Odete trabalha entre a performance, o texto, as artes visuais e a música. O seu trabalho é obcecado pela escrita historiográfica, utilizando o erotismo e a paranoia como duas formas somáticas de se relacionar com os materiais de arquivo. Escreve através do seu corpo, especulando biografias de personagens históricas através de prazeres epidérmicos: moda, personalidade, presença, fragrância, graça, sensibilidade. Afirma ser uma filha bastarda de Lúcifer, descendente da prática medieval de pactos satânicos para alterar o corpo sexuado de alguém. Tem pesquisado e trabalhado em torno da construção de pontos de ligação entre histórias “efeminadas”, desde o Castrati barroco até aos dândis do século XIX. A sua pesquisa mais recente centra-se na figura do Eunuco,  indo lançar o seu próximo livro pela editora neerlandesa Outline. O seu trabalho pode ser consultado em odete.pt

Imagem: xipipa

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