Share this Article

Sobrevoos e mergulhos, amplitudes e recortes: Citemor´24, prática artística, risco e descolonização | Dori Nigro e Paulo Pinto

18th December 2024

O texto que se segue foi escrito por Dori Nigro e Paulo Pinto, uma co-comissão entre performingborders, Residências Reflexo e Festival Citemor para o projeto Live Art Writers Network (LAWN). Os textos anteriores sobre o festival e os espectáculos podem ser encontrados aqui. Live Art Writers Network é uma rede que visa cultivar práticas de escrita experimental que acontecem em diálogo com a performance e a arte ao vivo, saiba mais sobre o programa aqui. As comissões de LAWN 2024 são publicadas no performingborders Pamphlet #6.

A versão traduzida para Inglês deste texto pode ser encontrada aqui.

Sobrevoos e amplitudes

Quando Xavier de Sousa nos convidou para debruçarmos o olhar sobre o festival Citemor’24 pressentimos ser este um espaço diferente dos que já frequentamos.

Sair do porto em direção a Montemor o Velho, de comboio, proporcionou-nos entrar em contacto com paisagens urbanas e rurais em movimentos poéticos, que antecediam a promessa de encontro com uma parte da história da performance em Portugal, a se redesenhar continuamente longe de espaços hegemônicos há mais de 50 anos.

Cada desenho de casas e verdes enquadrado nas janelas do comboio parecia formar um álbum de fotografias e memórias de um festival que se pauta em experimentações, provocações performativas, celebração da criação da cena ibérica e das afetividades costuradas nas partilhas criativas ao longo de anos.

A casa da família de Xavier é o portal de acesso ao passado do festival, quando moradores da cidade ainda acolhiam artistas em suas residências formando uma teia ampla de relações entre populares e fazedores das artes.

As acolhidas espontâneas de artistas nas casas dos moradores ficaram no passado, certamente impactadas pelas mudanças das geografias humanas que levaram a juventude da cidade para fora da região/país, pelo envelhecimento da população local e pela redução drástica do número de seus habitantes.

O Citemor é reflexo da casa da família do Xavier, espaço de trocas seguras para construção de performances e de amizades, para alguns de amores. Sim, porque há casais que se reconheceram como tais nesse espaço de criação livre e câmbios leves, sem obrigações e preocupações com obras acabadas.

Estarmos num festival que não se movimenta pela pressa capitalista de impor-nos várias obras a acompanharmos diariamente em vários turnos, já aponta uma das maiores qualidades do evento. Há na organização o sentido de respiro, de vivência da cena e convivência entre artistas, produção e público. Literalmente respira-se a criação artística desobrigada.

O suporte contínuo da equipa técnica é notável, percebe-se o engajamento e o comprometimento para que criadores e performers consigam realizar da melhor maneira seu imaginário com sabor de estreia, tamanho empenho de cada pessoa envolvida na cena e fora dela.

Pela integração do grupo de trabalho que costura toda a trama, vê-se que uma segunda família foi bordada pelos fios dos anos no tecido que envolve toda a gente que vive na cidade e que chega e volta na edição seguinte. O Citemor tem características de família forjada em gerações de criação e laços afetivos.

Pelos envolvimentos recriados no decorrer dessa jornada de mais de 50 anos, é comum a necessidade de olhar para trás para avaliar os caminhos percorridos, escolhidos, evitando o risco da sedução da proteção dos espelhos e pares, por isso o Citemor se abre generosamente a este olhar de fora que cuidadosamente abraçamos.

A presença feminina na cena do festival reforça a tecitura de filigrana, compondo um desenho reflexivo, maduro, forte, consciente da presença. Artistas que com o passar do tempo deixam marcas no evento e público, revelando marcas do tempo no próprio corpo, dando ideia de passado e contemporaneidade a alimentar futuros.

Prende-nos o olhar três atos variados de Amália Fernández, em “Solala”, quando se propõe tocar em temas que causam sentimentos contraditórios, a partir de memórias subjetivas e sociais, cosendo a platéia como retalho de uma colcha infinda de relembranças. No pentear dos cabelos, Anabela Almeida, passeia por saudosismos de um tempo que não volta mais, em “A outra casa da praia”, recordando segredos de família, de mulheres, levando o público a projetar o cotidiano de uma família comum portuguesa em Moçambique colonial e o choque quando de seu retorno à pátria lusitana, pós 25 de abril.

No minimalismo de “Lo que baila”, Paz Rojo ocupa espaço/tempo sem obrigação de limite, linhas sonoras oníricas percorridas por um corpo que percebe-se como trânsito de luz direcionada em sombras mínimas, um corpoarquivo que dança. Os cabelos de Olga Mesa, denunciam sua presença intensa, mesmo que não como foco de alguma performance própria. Sua expresividade generosa se sente tanto dentro no trabalho coletivo “Ruído de Sirenas”, com o esboço colaborativo para a coreografia, como fora performando um corpo que transpassa os anos desse festival com energia que vibra experiência, experimentação, diálogo, esperança.

O empenho para a construção de uma expressividade coletiva em “Jamás – Jamás” (Ruído de Sirenas), orquestrado por Francisco Ruiz de Infante, descortina uma metodologia que envolve a pedagogia da performance. A academia cede às mitologias e vem à cena trazida pelo movimento de investig/ação Fuera de Campo, onde professor e alunos/estagiários arriscam-se a compor (n)um universo caótico de materialidades improváveis onde a masculinidade, em suas polaridades e incongruências, se manifestam como ludicidade absurda.

O Citemor brota como resistência poética e contraponto diante da pressa contemporânea e do capitalismo que impõe formatação, quase como franquia comercial, a inúmeros outros festivais preocupados com a constituição de um menu diverso e abarrotado de produções a serem devoradas num curto espaço de tempo. Tanto como a cena performativa, interessa ao festival os encontros, as conversas, os almoços e jantares, as pausas e momentos de lazer, como os vividos nas salinas, entre sardinhadas, beliscares e bebericares e observações sobre o saber fazer dos guardiões do sal. É esse o tempero de uma flor que nasceu, cresceu e firmou-se numa paisagem micro urbana com feições bucólicas, longe dos espaços/tempos/templos ansiosos dos eixos hegemônicos re/produtores de cultura à fugacidade.

Mergulhos e recortes:
Apontamentos sobre prática artística, risco e descolonização

No contexto do festival Citemor, 2024, acompanhamos obras diversas, partilhadas com o público enquanto espaço aberto e processual. O Citemor tem uma natureza incubadora acolhendo artistas e proporcionando espaço de residência que não se fundamenta, necessariamente, num resultado final, abrindo espaço para o erro e o inacabamento enquanto obra.

No Citemor, o público acede ao programa pagando, democraticamente, um valor que lhe é confortável.

Na sua génese, o Citemor é um festival que valoriza o processo em detrimento do fim, apreciando o encontro no lugar de uma fugacidade que retira o tempo para comer juntos.

Andar à contramão de um painel do isto ou aquilo e/ou numa lógica fast food que faz-nos engolir sem mastigar, é uma pedagogia de teimosia levada a cabo no Citemor.

Nesta pedagogia, sentamos à mesa e comemos com artistas, curadores, produtores, programadores e técnicos que já se conhecem há muito e constituem uma rede de criação afetiva que faz deste festival um ato de resistência.

Os 50 anos do Citemor anuncia também a sua resiliência, considerando a vida curta de muitos festivais dependentes de uma política cultural capitalista que valoriza o número, descredibilizando o processo.

O risco de um fazer inacabado

Decidir é romper e, para isso, preciso correr o risco. Não se rompe como quem toma um suco de pitanga numa praia tropical (Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, 2021, p. 48).

No âmbito da conferência anual da Acesso Cultura, o painel: “O risco de errar, o erro de não arriscar” (Teatro Municipal São Luiz, 2023), abordou por diferentes lentes e vozes, de investigadores e profissionais da cultura o erro enquanto possibilidade transformadora. Assumir o erro é abraçar o risco. A conscientização do erro permite aprendizado constante e rompimento de paradigmas. Negar e/ou permanecer no erro, sem consciência, é resistir às mudanças inseparáveis do fazer artístico e de qualquer humanidade.

Há em Portugal um ecossistema relevante e plural de residências artísticas e outros contextos/formatos de apoio à criação que importa preservar, apoiar, conectar, amplificar e difundir. Vivemos, neste pós-pandemia, um período de inegável vitalidade e prolixidade criativas em Portugal. Daí a importância de garantir tempo, espaços e contextos para as várias dimensões dos processos de inventividade: questionar, investigar, experimentar, partilhar. Para escavar o risco, para errar melhor (Paulo Pires, Para errar melhor: residências artísticas e apoio à criatividade, 2023).

A assertiva de Paulo Pires espelha o trabalho do Citemor como exemplo de espaço-tempo para errar. No Citemor entramos em contato com práticas artísticas nos seus múltiplos cruzos, em constante estado de processo, e assumindo o risco de errar, e de aprender como processo. Há muitas obras que se caracterizam pela sua natureza processual, ou seja, a obra é o processo. Para Cecilia Salles no livro: Gesto inacabado: processo de criação artística, 2015, p.157:

As redes de criação (tomadas como processo sígnicos) que se mantêm no ambiente marcado pelo inacabamento e interações, aparecem como um sistema aberto que exprimem tendências, como a construção e satisfação de um projeto poético.

Erro, esta palavra que, por um lado causa medo e repulsa coletiva, tem sido constantemente explorada e ressignificada por práticas culturais e educacionais, como no exemplo citado do painel da Acesso Cultura e na observação da programação do Citemor. Ampliando o leque de possibilidades citamos as práticas educativas de Cristina Roldão que, no âmbito do ensino superior, problematiza os erros repetidos historicamente e sem qualquer responsabilização ética dos manuais escolares oficiais de história. Ariana Furtado através do projeto “com a mala na mão contra discriminação” desenhado para crianças e jovens da educação popular, e do ensino formal e não-formal invoca para a escola uma pedagogia da conscientização que abarque a real diversidade étnico-racial portuguesa. O erro foi tema de uma da exposição: Erro 417: Expectativa Falhada (Galeria Municipal do Porto, 2022), sob curadoria de Marta Espiridião, onde noções sobre falhanço e sucesso foram questionados através da arte contemporânea.

Pensar no erro leva-nos a refletir quem tem o direito a errar? Há certas profissões que um erro pode afetar, tragicamente, a vida de muitas pessoas. Reclamamos o erro enquanto possibilidade aberta que nos permite avaliar nossos caminhos e escolhas. Errar é humano. Permanecer no erro é privilégio. O erro, quando problematizado, pressupõe mudança e aceitação dos riscos. Para Paulo Freire, o ato de ensinar requer risco. Tal risco assume-se também para o gesto da curadoria.

É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo. Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia (Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, 2021, p.19).

A história do Citemor se confunde com a da revolução. 2024 é o ano em que também se comemora, em Portugal, os 50 anos de libertação das amarras de um regime ditatorial que assolou o país durante quase o mesmo tempo. Olhando para um passado, presente, de ameaça a democracia, através de demissões, cortes de orçamento à cultura e actos de censura a liberdade de expressão de artistas protagonizado por instituições públicas assentes num racismo e autoritarismo, compreendemos, como afirma Angela Davis, que a liberdade é uma luta constante. Com pés nos chãos, invocamos outro D de uma conquistada e utópica Descolonização que ainda há muito por cumprir.

Orlando Patterson afirmou que o próprio conceito de liberdade – que é considerado tão valioso em todo o Ocidente, que inspirou tantas revoluções históricas no mundo – deve ter sido imaginado primeiro por pessoas escravizadas (…) Acredito que seja importante apontar aquilo que em geral é chamado de tradição radical negra. E essa tradição não está simplesmente relacionada ao povo negro, mas a todos os povos que lutam pela liberdade. (Angela Davis, A liberdade é uma luta constante, 2018, p.49-64)

Pensar num festival é pensar na descolonização. Acreditamos num festival como lugar de (in)certezas que age espelhando o mundo dentro-e-fora, produzindo utopias, simbologias e perguntas. Acreditamos também num festival capaz de pisar nos diferentes chãos para criar respostas concretas à realidade. O real é terreno firme que pisamos no nosso cotidiano[1].

Realidade. Todos usamos rotineiramente esta palavra nos mais diferentes contextos e áreas de atuação e, no entanto, quase nunca paramos para pensar no seu significado, no que encerram essas suas nove letras. E não paramos porque, assim à primeira vista, o conceito nos parece óbvio que consideramos desnecessário qualquer questionamento ao seu respeito. Todavia, segundo uma asserção que já se tornou popular, o óbvio é o mais difícil de ser percebido (João Francisco Duarte Júnior, o que é realidade, 1984, p.8).

Falar com-e-para nossos pares parece ser o caminho mais fácil e acessível, por dominarmos a gramática daquilo que nos é mais familiar, confortável. Difícil é romper o óbvio. Temos resistência de sair dos nossos confortos dialógicos, culturais e epistemológicos, furar as nossas bolhas de certezas, verdades e escolhas e abraçar a alteridade. O gesto de curadoria não difere de um ato pedagógico. A curadoria requer uma pedagogia radical da esperança e da transformação.

Assim como quem educa escolhe o conteúdo para facilitar a mediação entre o educando e o mundo, quem cura atua no espaço da mediação entre artista e público, operando no tempo-espaço e escolhendo aquilo que quer apresentar ao público. A mediação é, portanto, um gesto tanto pedagógico como político, tanto temporal como espacial.

The question of curating is almost always a question of space, of how we interact in that space, as well as the possibilities of space. In order to approach curating from an anti-racist perspective, it is thus essential to consider how to act of “decolonially” in a space, given that space is never neutral (Wessels, Niemelä & Al-Nawas, We do encourage promiscuity, but this is not a motel. Anti-racist curatorial strategies from the margins to the centre, 2018, p.86).

Em”Bailar el problema”, segunda peça da trilogia “Solala”, e “A outra casa da praia”, obras respectivamente das artistas Amália Fernández e Anabela Almeida escolhidas para compor o espaço do festival deste ano, as (auto)autobiografias expõem traumas não resolvidos e os ecos silenciados da colonização portuguesa e espanhola.

A programação do Citemor tem um forte recorte ibérico, através de uma rede de afeto tecida ao longo de muitos anos. A presença dessas obras no festival fez-nos pensar acerca da participação dos dois países na colonização, assim como num histórico de negação, vergonha e projeção de culpa dos dois lados. Não há colonização menos pior ou melhor. Há uma letargia que impede a responsabilização de encarar o trauma com compromisso e o racismo como consequência.

Acreditamos no festival como assemblage que proporciona encontros, utopias e diálogos, a partir dum real vivido e ou imaginado, capazes de transformar o presente. Acreditamos no festival como vetor de utopias, de sonhos e reinvenções na conscientização de que há futuros possíveis. “A conscientização nos convida a assumir uma posição utópica frente ao mundo, posição esta que converte o conscientizado em ´fator utópico´”. (Paulo Freire, Conscientização, 2018, p.16).

Alguns festivais têm-se dedicado a esta utopia, desestabilizando fatalismos e negacionismos sobre a descolonização, possibilitando trocas e aprendizagens mútuas através de formações e pensamentos que não se esgotam no tempo efémero do festival. No âmbito do festival internacional Alkantara, que cruza a linguagem da dança, do teatro e da performance, possibilitando diferentes encontros e partilhas de conhecimento na cidade de Lisboa, são realizadas conversas pós-espetáculo, gerando reflexões não só sobre os processos criativos, mas também sobre a análise crítica dos temas abordados.

O Alkantara, em parceria com o Polo Cultural Gaivotas, Lisboa, criou o PISTA, um programa modular de formação e de fóruns, com vista ao desenvolvimento e atualização de competências profissionais, à partilha de boas práticas e à discussão pública de temas e tópicos chaves para o desenvolvimento profissional de agentes culturais.

Em 2021 o PISTA abordou aspectos da descolonização nas artes, através do fórum sobre representatividade negra nas artes performativas em Portugal, moderado por Raquel Lima e com artistas, gestores e curadores do sector cultural. Cabe mencionar que deste fórum foi redigido um relatório com propostas práticas atendendo aos pilares da Década Internacional dos Afrodescendentes (Assembleia Geral das Nações Unidas 2015-2024) que finalizando este ano, infelizmente, pouco impacto teve no sector cultural português.

No âmbito do Festival DDD, Porto, (2022), a conversa geradora partiu da pertinência de um festival, na atualidade, assim como na lógica das escolhas. Programa-se para quê e para quem? Em 2023, o DDD, em parceria com o Alkantara, retomou a discussão refletindo de que forma pode um festival reinventar-se a si e transformar as instituições culturais através do reconhecimento dos seus erros e falhas.

O Festival Passagens, Lisboa, (2024), que reúne práticas artísticas performativas e música, trouxe ao palco temas para discussão em rodas de conversas abertas sobre colonialismo, migração, justiça e reparação.

Apesar deste caminho trilhado assente na utopia de transformação radical do sector cultural pelo reconhecimento do erro, da falha e falta, tais práticas carecem de uma continuidade para que possam se comprometer em ações concretas tanto a curto como a longo prazo.

Acreditamos no poder dos festivais como mediadores da estética e da ética. Desafiamos, por isso, os festivais, enquanto espelhos da sociedade, a assumir um compromisso ético com a descolonização como parte integrante dos seus planos estratégicos e de sustentabilidade, em diálogo com as orientações nacionais e europeias que englobam também a cultura, como a Carta do Porto Santo (2021), promovida pelo Plano Nacional das Artes, PNA, desenvolvido no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia e a Agenda 2030 através dos seus 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

A Agenda 2030 é um plano de ação global recomendado pelas Nações Unidas que reúne 17 objectivos de desenvolvimento sustentável que visam promover a justiça e erradicar as assimetrias sócio-raciais. Destes objectivos, destacamos o ODS 10: Reduzir as desigualdades e o ODS 16: Paz, justiça e instituições eficazes.

Acreditamos na utopia destes dois objectivos como um plano estratégico a abraçar pelos festivais e programas culturais comprometidos com o futuro.

Por fim, estas diretrizes são concretizadas através do reconhecimento do racismo estrutural e institucional como uma barreira à justiça social; da distribuição equitativa de recursos e da promoção do acesso sem restrições à cultura. Em que ciências humanas pensamos quando falamos de sustentabilidade? A sustentabilidade exige que se corra o risco de assumir privilégios e de derrubar as fronteiras que separam e dividem para construir pontes de reparação histórica.

Não pretendemos assumir a responsabilidade de ensinar a repensar e a refazer as práticas artísticas europeias com o nosso olhar de criadores/performers/investigadores do Sul Global em solo ibérico. Acreditamos que esta tarefa não cabe a pessoas racializadas, imigrantes de antigas colónias que historicamente têm sido instrumentalizadas para servir os modos de vida impostos pelo eurocentrismo.

A colonização, o racismo, a xenofobia, etc., encontraram na branquitude europeia a sua amplificação e potência comercial. É através da fricção da alteridade, do reconhecimento de lugares de privilégio, da cedência e criação de espaços para a diversidade, da procura de informação que rompa com a ignorância sobre estas questões, que a chave para a mudança estrutural pode emergir.

Independentemente disso, uma revolução já está a acontecer em várias esferas, incluindo a cultura e as artes, no dia a dia das urgências gritantes das desigualdades sócio-raciais, alimentadas durante séculos para manter os benefícios de alguns.   

As linhas que escrevemos sugerem, afetivamente, uma perspetiva simultaneamente ampla e focada na compreensão do que constitui o termo ibérico, tal como adotado pelo festival.

As travessias para outro continente, forjadas por Portugal e Espanha, fizeram com que essas línguas e tradições, por meio de invasões, plantassem sementes profundas de dor e alegria, e inúmeras outras contradições.

Assim, outras margens também abrigam uma composição ao mesmo tempo tradicional e contemporânea do que é ser ibérico e suas misturas.

Acreditamos que o Citemor, como festival pioneiro, promete continuar, passados 50 anos, rumo a outras infinitas contaminações, com o risco e o erro reconhecidos como sua base, assumindo a provocação de cutucar a lógica colonial que infelizmente ainda impera na cultura, nas artes, na educação e na sociedade portuguesas.

Residência Reflexo curada por Xavier de Sousa (a esquerda) com Dori Nigro, Paulo Pinto e Cláudia Galhós. Foto feita por Daniel Pinheiro.

Finalizamos esta reflexão com a imagem da residência Reflexo cuidada e curada por Xavier, fruto de diálogos que continuaram pós-festival. Esta casa que nos acolheu com a energia ancestral no qual dormimos, cozinhamos tapioca e tomamos caipirinha. A energia da mesa representa aquilo que é Citemor, espaço de partilha e de afeto. Agradecemos, igualmente, a generosidade e as trocas simbólicas da Cláudia Galhós, uma entidade deste festival, que nos falou do seu passado e apontando futuros esperançosos com pés assentes no chão.

Biographies:

Dori Nigro e Paulo Pinto (Brasil/Portugal) são criadores, performers, arte/educadores, pesquisadores com vivência acadêmica na Universidade Católica de Pernambuco, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Companheiros de vida e arte que criam ativando temas ligados à ancestralidade, espiritualidade, cultura popular; memórias afetivas; herança colonial; corpos dissidentes; educação, saúde mental e finitude. Atuam em dupla, em parceria com outros artistas amigos, com grupos e comunidades, e, às vezes, sozinhos.

São cuidadores da LARòyè, casa/atelier de partilhas afetivas, criativas, ancestrais; do Tuia de Artifícios, coletivo de criação; do Laboratório dos Sentidos, oficinas de experimentação costuradas por práticas artísticas, arte/educação, arteterapia. Possuem produção reconhecida pelo Salão Único de Arte Contemporânea do SESC/PE; SPA das Artes de Pernambuco; Galeria Municipal do Porto; Museu de Arte Contemporânea de Serralves; Museu Bienal de Cerveira; Bienal de Fotografia do Porto; Campus Paulo Cunha e Silva; Trema Festival – Quilombo Trema; Festival Dias da Dança – DDD; programa Shuttle, Internacionalização Artística; DGARtes – Direção Geral de Artes de Portugal. Suas últimas criações em parceria, são: Alva Escura; PIN DOR AMA, Primeira Lição; Vento (A)Mar; Serei/Afrodiaspórica. Ultimamente estão a trabalhar nos projetos SALVALAVALMA e Tá Pió Cá, Lição de Raíz.

IG: @dorinigro / @paulo.emilio.pinto

Image credits:
Photos 1, 2, 3 & 6 by Paulo Pinto
Photo 4 by Dori Nigro
Photo 5 & 7 by Xavier de Sousa
Photo 8 by Daniel Pinheiro

Referências:

Davis, A. (2018). A liberdade é uma luta constante. Boitempo Editorial.
Duarte Júnior, J. F. (1984). O que é a realidade. Brasiliense Editora.
Freire, P. (2018). conscientização. Cortez Editora.
Freire, P. (2021). Pedagogia da autonomia. Paz e Terra Editora.
Paulo Pires (2023), Para errar melhor: residências artísticas e apoio à criatividade, in Comunidade Cultura e Arte.
Salles, C. A. (1998). Gesto inacabado: processo de criação artística. Annablume.
Wessels, C., Niemelä M., & Al-Nawas, A. (2018). We do encourage promiscuity, but this is not a motel. Anti-racist curatorial strategies from the margins to the centre. In Bayer, N., Kazeem-Kaminski, B., & Sternfeld, N. (Eds.). Curating as anti-racist practice. ​​Aalto University, School of Arts, Design and Architecture.


[1] (Duarte Júnior, 1984, p.8)

You might also like