Texto escrito por Pedro Vilela para o projeto Live Art Writers Network durante o Festival Dias da Dança, Abril-Maio 2025. Outras comissões criadas e publicadas em resposta ao festival e suas performances integrantes, e a mais informação sobre o projeto, podem ser encontradas aqui. Todas as Comissões são publicadas em Português e Inglês.
Ouve a versão áudio deste texto, lida por Pedro, aqui:
Ao acompanhar diferentes festivais ao longo dos últimos anos, tenho vivenciado de perto o impacto que estes provocam nas cidades onde ocorrem — verdadeiras janelas utópicas que se abrem, um exercício de conexão entre a sociedade que os acolhe, talvez, por sua intensa vocação para a celebração coletiva.
Não à toa, muitos de nossos festivais mais longevos surgem com o propósito de contribuir para a reconstrução de territórios em períodos pós-terror, transitando entre a vida e a morte, reavivando a consciência sobre nossa frágil existência. São os casos do Festival de Avignon, que surge como parte dos esforços da municipalidade para revitalizar a cidade após os intensos bombardeios de abril de 1944 — um processo que envolveu não apenas a reconstrução arquitetônica, mas também a reanimação cultural do território, e do Festival Internacional de Edimburgo e sua mostra paralela, o Fringe, também criado ao fim da Segunda Guerra Mundial com o objetivo de “elevar o espírito” do povo escocês, como declarou Rudolf Bing, idealizador do evento à época. Do outro lado do Atlântico, o Festival de Manizales, criado em 1968 na Colômbia, e o Festival Internacional de Teatro de Caracas, fundado em 1971 na Venezuela, estão entre os mais antigos da América Latina, surgidos em certa medida como resposta aos regimes ditatoriais que marcaram esses países, contexto semelhante ao que mais tarde inspirou o Festival Ibero-americano de Bogotá (1988) e o Festival Internacional de Santiago do Chile (1994).
Por outro lado, cada vez mais é recorrente o encontro com experiências contemporâneas caracterizadas por “uma certa solenidade na celebração, um caráter excepcional e pontual que a multiplicação e a banalização dos modernos festivais muitas vezes esvaziam de sentido”, como observa o teórico francês Patrice Pavis em seu Dicionário de Teatro. Ou seja, festivais em que a ausência de um pensamento curatorial e a sobreposição dos números atingidos — de público, espetáculos ou patrocínios — se impõem sobre a reflexão acerca do impacto cultural efetivo que esses eventos poderiam ou deveriam gerar nas cidades onde ocorrem. Em muitos casos, o brilho das estatísticas ofusca a complexidade das relações culturais que poderiam ser construídas a longo prazo e, ainda que movimentem economias locais, estimulem o turismo, gerem empregos e promovam a circulação de obras e artistas, esses eventos frequentemente se tornam instrumentos de marketing urbano, operando sob uma lógica de rentabilidade e visibilidade, mais do que de transformação social ou cultural.
Esse conjunto de fatores alimenta uma espécie de corrida simbólica entre cidades que desejam possuir um festival “para chamar de seu” — não raro, mais como estratégia de posicionamento no mercado cultural global do que como compromisso com a produção artística local. No entanto, para sorte dos que aqui vivem, a cidade do Porto, através dos festivais que acolhe, consegue escapar a esta lógica, ao calendarizar eventos capazes de atingir números expressivos sem descuidar do pensamento curatorial que rege as escolhas dos trabalhos apresentados.
Com nove edições realizadas, o DDD – Festival Dias da Dança rapidamente se consolidou como um dos eventos culturais mais relevantes de Portugal, reunindo um público expressivo, ocupando diversos espaços artísticos e transformando a cidade do Porto, ainda que temporariamente, na “capital da dança” da Europa. Embora o festival não adote uma linha curatorial fixa nem proponha um tema unificador que direcione explicitamente a seleção das obras, é possível perceber um movimento consciente no sentido de ampliar as narrativas corporais que habitam e tensionam o território. Esse gesto curatorial — ainda que difuso — parece dialogar com urgências locais atravessadas por estruturas coloniais persistentes, marcadas por processos históricos de exclusão e silenciamento. É sob essa perspectiva crítica que proponho refletir sobre algumas das obras apresentadas, transitando por uma espécie de percurso vivenciado ao longo dos dias.
Comecemos pelo dia 23 de maio: é noite de abertura e celebração. O Teatro Municipal do Porto – Rivoli se prepara para dar início a mais uma edição do DDD – Festival Dias da Dança. Há um movimento intenso no foyer, onde artistas e espectadores compartilham o entusiasmo de participar de um festival que, rapidamente, tornou-se parte do imaginário cultural da cidade. Os bilhetes estão quase esgotados, os convites previamente reservados são distribuídos pelos funcionários, e os poucos ingressos restantes seguem disponíveis na bilheteira. Mas afinal, quando começa realmente um festival? No momento em que as cortinas se abrem, ou na vibração dos encontros e reencontros que antecedem o espetáculo, ainda fora da sala de representação?
Para a noite de estreia, foi escolhida a obra Os Gigantes, com direção artística de Victor Hugo Pontes em colaboração com o coletivo Dançando com a Diferença, sediado na Madeira, reconhecido por sua atuação em dança inclusiva e por sua missão de promover a inclusão social e cultural através da arte. A mensagem transmitida pela curadoria é nítida: de um lado, a valorização do encontro entre duas referências consolidadas da dança portuguesa; de outro, o esforço de amplificar a presença de outras corporalidades na programação do festival.
A vinheta do DDD é projetada. Longa, talvez longa demais — há tempos não via uma vinheta durar tanto! Seria um prenúncio? Os Gigantes é baseado no texto Os Gigantes da Montanha, peça inacabada do italiano Luigi Pirandello, autor com o qual Victor Hugo Pontes já havia dialogado na origem do espetáculo Drama, em 2019. Nesta nova criação, a fábula, o inacabado, o onírico e a liberdade criativa são marcas evidentes da proposta estética do diretor. Contudo, o resultado escancara uma fratura: uma desconexão latente entre o universo poético e dramatúrgico que tem guiado Pontes nos últimos anos e o trabalho desenvolvido pelo Dançando com a Diferença. O que inicialmente parecia ser um potente encontro entre linguagens e perspectivas torna-se, então, uma sobreposição desigual, onde os gestos de inclusão acabam diluídos por uma direção que pouco dialoga com a especificidade daquele coletivo.
Com o resultado visto em cena, ainda que a abertura a diferentes colaborações seja uma marca do coletivo madeirense, não pude deixar de refletir sobre a escolha estratégica de convidar, ao longo dos últimos anos, distintos criadores para assinar suas obras. Desde 2017, passaram por ali nomes como Tânia Carvalho, La Ribot, Vera Mantero, Marlene Monteiro Freitas e François Chaignaud. Estaríamos diante de uma tentativa legítima de explorar novas metodologias de criação, ampliando horizontes artísticos? Ou tratar-se-ia de uma busca por validação estética e simbólica, uma forma de credenciar, por meio de colaborações consagradas, o trabalho desenvolvido ao longo de mais de duas décadas, que por si só deveria ser suficiente?
No caso de Os Gigantes, a contradição entre o discurso institucional e o resultado cênico salta aos olhos. A proposta de Dançando com a Diferença, tal como divulgada em seu próprio site, visa contribuir “para a valorização das capacidades e competências artísticas dos bailarinos com deficiência”. No entanto, o que se presencia em cena caminha em direção oposta. A escolha por figurinos festivos e o tom lúdico forçado resultam numa evidente infantilização dos corpos em cena, gerando uma espécie de constrangimento para os espectadores que se veem diante de uma obra que não emancipa, mas expõe — comprometendo não apenas o seu próprio potencial artístico, mas também suas dimensões social, cultural e política. Ao longo do espetáculo, uma série de decisões infelizes vai se acumulando: a trilha sonora reforça o tom de caricatura; o desenho de luz parece mais interessado em brincar com a paleta RGB (Red, Green and Blue) do que em dialogar com as necessidades expressivas da cena; e a direção artística opta por uma estética que ignora — ou ao menos subestima — as corporeidades singulares que ali se manifestam. O resultado é um apagamento simbólico disfarçado de inclusão.
A frustração foi inevitável, sobretudo quando comparada a experiências recentes de natureza estética e ética profundamente distintas. No FITEI 2023, por exemplo, o espetáculo Hamlet, dirigido pela peruana Chela Ferrari e protagonizado por um elenco de artistas com síndrome de Down, revelou-se uma experiência cênica comovente, precisa e politicamente vigorosa. Ali, o público não apenas acompanhava: desejava permanecer, ser afetado, seguir sendo atravessado por aquela proposta. Já em Os Gigantes, confesso — e o faço com pesar —, torci em silêncio para que terminasse logo. Não por desrespeito aos intérpretes, mas justamente por cortesia a eles, pela desconfortável sensação de estarem inseridos num dispositivo que pouco os escutava.
Alguns dias depois, transitei até o Teatro Municipal de Gaia, indo ao encontro de um dos trabalhos que mais despertava expectativa, a nova criação da artista brasileira Gaya de Medeiros, intitulada Cafezinho. Tenho acompanhado com interesse e admiração sua trajetória em Portugal, não apenas pela qualidade artística de suas obras, mas pela força com que tem atravessado — com todas as suas interseccionalidades — o ambiente ainda conservador de muitas instituições culturais portuguesas.
Assistir aos seus trabalhos, em certa medida, é também um gesto de reconexão com o meu próprio país, um reencontro com códigos estéticos que nos constituem enquanto artistas de uma geração marcada por referências comuns. Em Gaya, identifico resquícios da cena mineira — especialmente em sua relação com a palavra, com o corpo e com a delicadeza do gesto. Para mim, sua escrita carrega ecos da dramaturga Grace Passô, por exemplo, figura central na renovação da linguagem teatral contemporânea no Brasil.
Em Cafezinho, Gaya parte livremente de Café Müller (1978), de Pina Bausch, obra atravessada por um sentimento de solidão, desamparo e busca — e que aqui se converte num campo de elaboração melancólica. Há algo de autobiográfico no modo como Gaya costura esse sentimento à sua própria travessia entre Brasil e Europa. A obra se constrói num clima íntimo, onde músicos e intérpretes partilham uma atmosfera de saudade, de deslocamento emocional e afetivo.
No entanto, em determinados momentos da obra, alguns ruídos se estabeleceram em minha mente. Cito, por exemplo, um em que Gaya enuncia algo como: “Eu venho de um país que, apesar de tudo o que passamos, ainda canta.” E é nesse enunciado que, enquanto evoca a figura de um povo que resiste cantando, sorrindo, reinventando a vida, a artista introduz cortes na fala com a canção Canta, canta, minha gente, de Martinho da Vila. Para mim, a cena nos propõe uma espécie de deslocamento entre o lirismo e o abismo — entre o desejo de pertencimento e o peso da migração, entre a imagem idealizada de um país que canta e a dor silenciosa de quem parte.
Com muito cuidado, desde já esclareço que não pretendo impor uma leitura unívoca sobre um país de dimensões continentais como o Brasil. Reconheço — e respeito profundamente — o direito que Gaya tem de reconstruir, a partir de sua experiência pessoal e artística, a imagem de um Brasil que lhe é próprio. Ainda assim, ao escutar aquele discurso, tal como em outros momentos em que este imaginário brasileiro é ativado, não pude evitar a reflexão sobre como nós artistas muitas vezes operamos dentro de imaginários moldados pelas expectativas alheias, sobretudo nas encruzilhadas entre afirmar ou subverter as imagens que espectadores e, especialmente, programadores culturais constroem sobre nós.
Lilia Moritz Schwarcz, historiadora e antropóloga, em seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro (2019), nos lembra que
O brasileiro foi muitas vezes representado como cordial, pacífico e alegre, mas essa é uma imagem construída para esconder as violências de nossa história e de nosso presente.
O Brasil de onde venho, o mesmo onde passei 35 anos de minha vida, talvez não seja o mesmo que Gaya evoca. O Brasil que conheço carrega feridas coloniais profundas, é atravessado por uma violência brutal — física, simbólica, moral — e se encontra ciclicamente submetido a processos de desumanização. É um país que apenas recentemente conseguiu se livrar de um presidente de extrema-direita, abertamente racista, misógino e negacionista. É também um país onde, segundo dados de 2012 a 2022, cerca de 111 pessoas negras foram assassinadas por dia. Diante disso, a ideia de um povo que “canta apesar de tudo” soa, para mim, menos como resistência e mais como romantização de uma dor histórica ainda pulsante.
Preocupa-me, sobretudo, a manutenção de um imaginário estereotipado — muitas vezes reproduzido no exterior — que reduz a complexidade de nossa existência (enquanto brasileiros) a imagens prontas, recicladas desde os anos 1980 e 90, quando novelas brasileiras começaram a ser exportadas em larga escala. Esse imaginário é marcado por uma hipersexualização de nossos corpos afro-latino-americanos, por uma associação quase automática ao samba, ao carnaval, à malandragem — imagens que, sob o verniz da celebração, carregam um potencial violento de despolitização e silenciamento. São imagens que continuam a nos atingir diretamente, a ponto de ainda hoje sermos lidos com desconfiança, suspeita ou exotismo ao tentar, por exemplo, alugar um apartamento em território europeu.
Cafezinho se apresenta como mais uma obra que evidencia a clareza, a maturidade com que Gaya maneja os dispositivos cênicos que escolhe explorar e orquestra com precisão seus companheiros de cena. No entanto, compartilho apenas um desejo verdadeiro de que Gaya não se deixe levar por armadilhas de concessões às expectativas ou por enquadramentos imaginários exteriores — especialmente por olhares europeus que frequentemente tentam moldar o que esperam ver. Afinal, se para os mineiros o cafezinho é mais do que uma simples bebida — é um ritual de encontro e sociabilidade —, que possamos saboreá-lo em sua plenitude, reconhecendo e celebrando todas as diversidades que ele pode nos oferecer.
É justamente nessa chave de afirmação identitária que três obras, de modos distintos, se entrelaçam em seus gestos e provocações: Musseque, de Fábio Krayze; Violetas, de Vânia Doutel Vaz; e Vagabundus, de Ídio Chichava. Em todas, o corpo negro ocupa o centro da cena — não como objeto de representação, mas como sujeito pulsante, criador de linguagens e narrativas. São peças que ativam, cada uma a seu modo, relações complexas com a alteridade, com a memória e com o território. Obras que não apenas resistem, mas insistem em afirmar uma presença que não se dobra às convenções, e sim as transgride com potência poética e política.
Na véspera do 25 de Abril, segui em direção à Avenida dos Aliados, epicentro das celebrações no Porto pelo fim da ditadura portuguesa. Dentro de instantes, artistas conhecidos subiriam ao palco, cravos seriam distribuídos entre a multidão, fogos de artifício iluminariam o céu — tudo em nome de uma lembrança essencial: a liberdade, para todos os corpos e pensamentos, é inegociável. Nas proximidades da avenida, em uma pequena sala na Mala Voadora, Fabio Krayze e mais três intérpretes (Selma Mylene, Xenos Palma, Elvis Carvalho) nos aguardavam para apresentar Musseque — palavra da língua angolana Kimbundu usada para designar bairros periféricos suburbanos, similares às favelas brasileiras.
O dispositivo cênico, com simplicidade de disposição, reunindo o público ao redor da cena, evidenciava claramente que o corpo seria o motor central da obra. Nele, Krayze revisita as feridas da Guerra Civil Angolana e as complexas condições sociopolíticas de seu país a partir do pós-colonialismo português. Como um alerta, sua performance faz-nos reconhecer que a liberdade celebrada do lado de fora ainda não se realizou plenamente em sua terra natal, onde os ecos da colonização portuguesa ainda ressoam. Sem recorrer ao vitimismo, Krayze convoca um elemento unificador para seu povo – a música e a dança – especificamente, o Kuduro — gênero musical nascido em Angola, com influências do Sungura e do Rap, pulsante nesta performance. A sinceridade com que se entrega ao que propõe é tamanha que desperta no público o desejo de se juntar àquela dança, tornando o espetáculo um gesto coletivo de presença e resistência.
Dias depois, fui ao Teatro Campo Alegre assistir ao mais recente trabalho de Vânia Doutel Vaz, já envolvido pelos ecos de entusiasmo que Violetas vinha despertando na cidade. Entre a expectativa e a percepção, somos convidados a adentrar um universo sensível construído por Vânia em parceria com quatro intérpretes — Lua Aurora, Lucília Raimundo, Piny e Wura Moraes. Sob uma luz fixa, os corpos dessas mulheres nos conduzem por uma coreografia que oscila entre gestos minimalistas e expansivos, dotados de uma força que atravessa cada espectador. Ao validar a singularidade de cada intérprete, a obra sustenta o silêncio como espaço de revelação, onde o gesto — sempre carregado de potência política e social — emerge de forma nítida. Ali, as tensões entre dentro e fora, eu e outro, são constantemente convocadas, reforçando a centralidade do corpo como território de inscrição, resistência e reinvenção.
Mais adiante, reencontro Ídio Chichava e sua vibrante legião de Vagabundus, uma obra que havia assistido meses atrás no âmbito da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Nela, os 13 intérpretes — corpos plurais e potentes — retomam cantos tradicionais moçambicanos de diferentes épocas para juntos, reimaginar formas de viver o coletivo e reafirmar o valor da vida em comunidade. Assistindo Vagabundus, fui imediatamente transportado a um episódio emblemático ocorrido no Brasil em 2014: os chamados “Rolezinhos”. Naquele momento, jovens — em sua maioria negros e moradores das periferias — marcavam encontros pelas redes sociais para se reunir em shoppings de diversas cidades, apenas para passear, se divertir, ocupar espaços. A reação da sociedade foi imediata e reveladora: a reunião de corpos negros em determinados espaços sociais, tornava-se um acontecimento político, gerando debates acalorados sobre segregação racial e de classe no país. Como, então, não reconhecer a força política daqueles 13 intérpretes de Ídio Chichava, que ocupam o palco com um gesto coletivo contagiante? Com recursos mínimos e pouquíssimos objetos, sua ação parece funcionar como um coro contra a concretude das opressões cotidianas, devolvendo à cena a beleza e a urgência de corpos que insistem — juntos — em permanecer, criar e transformar.
Em sua obra Crítica da Razão Negra (2013), o filosofo camaronês Achille Mbembe discute como o conceito de “Outro” (particularmente o negro) foi construído historicamente no Ocidente. Ele nos diz:
O Outro só é tolerado quando se submete à condição de espelho. Ele deve refletir de volta ao Mesmo uma imagem reconfortante, familiar, sem perturbações.
Diferentemente do que acontece em Cafezinho, todas estas três obras não sublimam as cicatrizes intrínsecas as corporeidades que as performam. Pelo contrário, renunciam a quaisquer espécies de apaziguamentos, validando presenças e relembrando-nos ausências. Uma destas ausências, por exemplo, diz respeito a escassa presença de corpos negros nas salas de exibição do DDD. Ao longo das récitas dessas três últimas obras, me vi repetidamente contando — quase de forma involuntária — quantas pessoas negras havia na plateia. Raramente esse número ultrapassava 5% do público presente. Um dado silencioso, que só não consegue ser mais alarmante do que a ausência de profissionais negros inseridos na gestão do evento. Se de fato desejamos superar a comodificação da outridade — tão presente em muitos eventos culturais, onde, como aponta a teórica feminista e antirracista bell hooks em Olhares Negros: raça e representação, “a etnicidade se torna um tempero, conferindo um sabor que melhora o aspecto da merda insossa que é a cultura branca dominante” —, é preciso um gesto mais radical. E esse gesto deve começar na própria estruturação do evento.
Durante os dias em que o DDD ocupou o Teatro Rivoli, uma instalação florestal foi montada no café do espaço — uma espécie de selva artificial instalada no coração de um edifício de concreto. Essa intervenção, embora visualmente envolvente, dizia muito sobre o tempo efêmero que um festival pode imprimir na vida de uma cidade. Era evidente que, com o encerramento do evento, todas aquelas plantas seriam removidas. A floresta desapareceria. Retomaríamos então a rotina, o concreto, a normalidade cruel de nossa existência. Mas é isto realmente que desejamos?
Se, para mim, a abertura do festival soou como um desastre, foi ao longo da semana, por meio de outros trabalhos, que reencontrei com clareza a relevância de um evento como este para a cidade do Porto. Ainda assim, algumas perguntas permanecem: de que forma um festival como o DDD pode realmente contribuir para a construção de um tecido social mais justo e equitativo? Como garantir que diferentes corporalidades, raças e nacionalidades não apenas ocupem o palco, mas se sintam genuinamente acolhidas e respeitadas no cotidiano portuense — para além da efemeridade do festival? Como fazer com que essa breve janela de escuta e utopia se prolongue no tempo e se transforme em prática sustentada, e não apenas em gesto pontual? E como nós, artistas, podemos ativar nossos corpos a partir de nossas experiências, interesses e linguagens, sem concessões — e sem que sejamos transformados em mercadoria?
O desafio está lançado: que não celebremos a diversidade durante alguns dias do ano, mas que a cultivemos como uma floresta viva, na estrutura da cidade, nas relações que a sustentam e nas políticas culturais que a regem.
Créditos das imagens: João Octávio Peixoto / DDD
Crédito da imagem de destaque: Fabio Krayze – Musseque, João Octávio Peixoto / DDD
Pedro Vilela é artista-curador-investigador. Doutorando em Educação Artística pela Faculdade de Belas Artes do Porto, desenvolve a TREMA!, associação que conecta artisticamente Brasil e Portugal e colabora com diferentes estruturas da cidade do Porto. Tem interesse central na cena afro-latino-americana, refletindo temas como decolonialidade e dispositivos de racialidade. É ainda o primeiro latino-americano a ganhar a Bolsa Magaly Muguercia, promovida pelo Programa Iberescena.
Cuidemos da floresta e uma comissão de performingborders e DDD – Festival Dias da Dança, para o projeto Live Art Writers Network at DDD 2025