Texto escrito por AURA para o projeto Live Art Writers Network durante o Festival Dias da Dança, Abril-Maio 2025. Outras comissões criadas e publicadas em resposta ao festival e suas performances integrantes, e a mais informação sobre o projeto, podem ser encontradas aqui. Todas as Comissões são publicadas em Português e Inglês. Esta carta é a edição online de uma série de cartas escritas à mão pela artista AURA, que foram enviadas diretamente para uma seleção de artistas que apresentaram trabalhos no DDD, em resposta às suas apresentações.
Ouve a versão áudio deste texto, lida por Aura, aqui:
Querida equipa e público do DDD,
Há oito anos, participei num programa do festival chamado “Freaks da Dança” mediado pela Magda Henriques e com a participação de diversas pessoas, desde jovens estudantes e artistas, passando pelo público mais ou menos assíduo, até vizinhes do teatro.
Agora, participo através do programa “LAWN – Live Art Writers Network”, organizado pelo performing borders, no qual fui convidada a tecer pensamento crítico, tendo optado por escrever cartas a cada artista/companhia que assisti, com o objetivo de trocarmos reflexões e pensamentos em privado, como também, por redigir esta carta aberta dirigida a vocês.
Esta noção da carta surge de um lugar de afeto, cuidado e ternura radical que nem sempre é possível observarmos perante uma imprensa obcecada por cobrir o instantâneo e um contexto político liderado por discursos de ódio e populistas.
Há quem diga que a crítica morreu. Eu concordo. Há quem queira resgatá-la tal qual ela era. Discordo. Acredito veemente que precisamos de pensamento, de reflexão, de discussão – ainda que hajam debates, em torno de se eu e tantes outres artistas programades podemos ou não existir, que são inegociáveis. Existimos e ponto.
Talvez, me tenham observado enquanto eu ia tomando apontamentos durante os espetáculos. Talvez não. Confesso que me foi difícil sair de um lugar descritivo para um lugar crítico. Sem saber bem ainda qual seria. O dos elogios aborrecidos? Não. O de opinar como é que eu teria feito? Não. O da crítica destrutiva e de julgamento de valores? Muito menos. A responsabilidade é grande, mas a chave foi encontrar um balanço dentro de um espaço racional, mas também emocional.
Como uma carta de amor, redijo a partir do meu lugar de fala – enquanto espetadora, mas também artista – sobre cada evento que vivenciei. Foram dezoito espetáculos e uma festa durante duas semanas. O número não é relevante. Mas o esforço de ter visto quase todos sim. Foi intenso, mas valeu a pena, juro.
Transitamos por diversos estilos de dança, mas também de performance, desde o kuduru até ao pós-estruturalismo, passando pela apelidada “dança contemporânea” e técnicas somáticas, como também pelo humor, pela abstração e pela representatividade. O Porto foi até Matosinhos e Gaia, mas também às suas margens em Campanhã, e quão importante é essa rede!
Nas conversas e workshops de LAWN, debatemos que tipo de pensamento crítico queremos agora, como também sobre as nossas urgências, o lugar de fala, a eficiência ou não de uma peça, a relevância do fracasso, o didático na arte, a representatividade vs a imaginação que se tornaram fundamentais, especialmente para constatar que nada do que digo ou escrevo é permanente, mas um resultado do estado e contexto em que me encontrei num espaço-tempo específico, sendo efémero, mutável, e, sobretudo, questionável.
Reflito as vezes que o público se levantou ou não no final dos espetáculos para aplaudir, e do quão fácil é isso acontecer em grandes auditórios e menos em espaços não-convencionais. Das pessoas com quem fui conversando, das opiniões mais imediatas e dos abraços pós-espetáculos que dei a artistas, especialmente a amigues. Penso sobre quem esteve presente – sobretudo um círculo artístico habitual – e para quem a dança ainda não lhe diz nada. Remoo sobre o estado da cultura portuguesa mais centrada no futebol do que na dança. E quão pouco os meios de comunicação e de educação fazem para alterar isso. Reparo nes artistas que conseguiram obter passaporte para apresentarem os seus trabalhos cá e em festivais similares, e sobre es que são assassinades por sistemas opressores e genocidas. Relembro a Marcha da Liberdade do 25 de abril, que aconteceu simultaneamente com o DDD – Dias Da Dança, onde protestamos por uma Palestina livre. Medito sobre a diversidade do festival, mas também por quantes mais se podiam ter juntado.
Poderia refletir infinitamente sobre o mundo, sobre o sistema precário das artes, sobre injustiças sociais, extinções em massa, cada uma das peças ou acabar com uma analogia final bonita, mas acabo mesmo demandando mais amor.
Com carinho,
Aura
AURA (1997, Porto) é artista transdisciplinar e cofundadora da Asterisco. O seu trabalho foi apresentado no Teatro Municipal do Porto, Galerias Municipais, Bienal de Arte Contemporânea da Maia, The Place, Nottingham Contemporary, Centre for Live Art Yorkshire, Stockholm Fringe Festival, schuur, Derida Dance Center, entre outros. Possui mestrado em Performance Making pela Goldsmiths e licenciatura em Artes Plásticas e Intermédia pela ESAP e Academia de Belas-Artes de Gdańsk. auradafonseca.com
‘Carta aberta num contexto em que a dança e o pensamento crítico cruzam-se afetivamente’ é uma comissão de performingborders e DDD – Festival Dias da Dança, para o projeto Live Art Writers Network at DDD 2025.